Mundo à procura de um futuro melhor com igualdade de género na ciência

 In Celebrações, Entrevista

O mundo celebra hoje, 11, o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, efeméride instituída, em 2015, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, com o objectivo de promover a igualdade de género no campo da ciência e da pesquisa e alertar para exclusões contra o público feminino.

Para a organização mundial, a disparidade de género no campo científico continua a ser um grande desafio para os governos e os principais centros de produção de conhecimento científico no mundo.Num relatório, divulgado em 2015, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) revelou, por exemplo, que, no mundo, as mulheres representavam apenas 28 por cento do conjunto de pesquisadores, um “índice que se torna menor conforme é avaliada a participação desse público em posições hierárquicas mais elevadas e atreladas à tomada de decisões”.

No mesmo relatório é citado que “as mulheres também teriam menos acesso a financiamento, redes e cargos de destaque, conjuntura que as coloca em desvantagem para a publicação científica de alto impacto”. Numa mensagem, divulgada em 11 de Fevereiro de 2020, no âmbito da celebração do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, o Secretário-Geral da ONU destacou que, para o mundo enfrentar os desafios do século XXI, é necessário que sejam apoiadas as carreiras de mulheres cientistas e pesquisadoras e desmantelados os “estereótipos de género”.

Na mensagem, António Guterres lembrou que a “ciência é uma disciplina de cooperação”, mas que está a ser “contida por uma lacuna de género”. Para o secretário-geral das Nações Unidas, sem mais mulheres nas ciências, “o mundo continuará a ser projectado por e para homens e o potencial de meninas e mulheres permanecerá inexplorado.”

Já em 2021, na mensagem sobre o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, o Secretário-Geral das Nações Unidas apelou à comunidade internacional para garantir que as meninas tenham acesso à educação que merecem e que possam ver um futuro em áreas como engenharia, programação de computadores, tecnologia de nuvem, robótica e ciências da saúde.

António Guterres defendeu, na mensagem, que “promover a igualdade de género no mundo científico e tecnológico é essencial para a construção de um futuro melhor”. No ano passado, na véspera da celebração do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, a UNESCO divulgou um relatório, no qual são revelados novos dados sobre, por exemplo, a ciência da computação e informática.

Em todo o mundo, lê-se no relatório, as mulheres ainda representam apenas 28 por cento dos graduados em engenharia e 40 por cento dos graduados em ciência da computação e informática. O relatório aponta disparidades maiores em áreas altamente qualificadas, como inteligência artificial, onde apenas 22 por cento dos profissionais são mulheres.

A institucionalização do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência é uma iniciativa para o fortalecimento e comprometimento de todos com a igualdade de direitos entre homens e mulheres em todos os níveis dos sistemas educacionais, desde o ensino pré-escolar ao ensino superior, em estruturas formais e não formais e em todas as áreas de intervenção, desde as infra-estruturas de planeamento até à formação de professores.

ENTREVISTA À SOCIÓLOGA SYLVIA CROESE
“Os exemplos de mulheres bem sucedidas devem ser levados às escolas”

A nossa entrevistada é uma investigadora angolana que reside na África do Sul, onde é professora numa das mais renomadas universidades daquele país. Abordada por telefone, Sylvia Croese, a pessoa de quem se fala, aceitou, sem protocolos, conceder uma entrevista ao Jornal de Angola sobre o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, que é hoje assinalado.

Na entrevista, Sylvia Croese deu ênfase ao facto de existir espaço para a promoção e valorização, ainda mais, da presença de mulheres no campo da ciência, sobretudo, em áreas de pesquisa historicamente dominadas por homens. “O que falta é, também, falar e ensinar, nas escolas, os inúmeros exemplos de invenções e estudos inovadores que mulheres conseguiram desenvolver e, talvez, o reconhecimento de que a ciência sempre foi também feminina”, acentuou Sylvia Croese, investigadora sénior na Escola de Arquitectura e Planeamento da Universidade Witwatersrand.

Doutorada em Sociologia pela Universidade de Stellenbosch, igualmente na África do Sul, Sylvia Croese trabalha em questões de políticas públicas e governação, assim como na (co-)produção de conhecimento urbano, tendo já publicado três livros e mais de 20 artigos e capítulos científicos. Em 2021, foi nomeada pela plataforma “Apolitical” como um de “100 académicos mais influentes no mundo”

Como avalia, com base na sua experiência académica, a presença feminina no campo da ciência e da pesquisa?

É difícil avaliar a presença feminina no campo da ciência e da pesquisa por este campo ser ainda muito subdesenvolvido em Angola. Sabemos isto porque Angola, apesar de estar entre as 10 maiores economias do continente africano, continua a estar sistematicamente fora de qualquer lista ou ranking das melhores universidades africanas. Estes rankings medem a qualidade das universidades com base no ambiente de ensino e número de estudantes graduados, o volume e a qualidade das publicações e citações e a transferência e aplicação do conhecimento gerido pela universidade para outros sectores da sociedade, como, por exemplo, o sector privado. Os níveis de investimento na ciência e pesquisa, para permitir este tipo de outputs em Angola, ainda são muito baixos, em relação, por exemplo, ao Orçamento Geral do Estado. Ao mesmo tempo, a pesquisa científica requer uma série de infra-estruturas e condições, não só económicas, mas também técnicas, institucionais e sociais que precisam de ser melhoradas para termos um campo de pesquisa mais forte, com oportunidades para todos, mulheres e homens.

Existem formas concretas ­de promoção da presença feminina no campo cientifico?

Para que haja um campo de pesquisa científica bem desenvolvido, é necessário que se tenha, antes de tudo, recursos humanos, ou seja, professores bem formados, com experiência de pesquisa científica, que tenham tempo e recursos para se dedicar, exclusivamente, ao desenvolvimento de programas de pós-graduação, doutoramento e pós-doutoramento. Isto, por sua vez, exige programas de bolsas de estudo e fundos para a investigação científica, a existência de boas bibliotecas, o acesso a revistas científicas internacionais e a participação em redes e parcerias de investigação. Tudo isto não se faz de um dia para outro, mas temos que começar a acelerar estes esforços, urgentemente, a todos os níveis do sistema de ensino, desde o ensino primário de base às universidades. Mas, tendo dito isso tudo, precisamos de aumentar a presença e participação feminina no campo da ciência e existem formas concretas de apoiar e promover isto. Por exemplo, através da criação de programas específicos de orientação (mentorship) para e por mulheres, tendo que, de um modo geral, a pressão na gestão de responsabilidades profissionais e familiares incide mais fortemente sobre as mulheres. Isto passa, também, pela criação de um ambiente de trabalho profissional que garante a igualdade efectiva de oportunidades e desenvolvimento de carreira para mulheres, através do acesso a bolsas de pesquisa ou cursos de gestão de projectos.

Deve ser responsabilidade das escolas, sobretudo as públicas, incentivar e atrair as meninas, desde muito cedo, para as carreiras científicas?

Deve, em primeiro lugar, ser responsabilidade do Estado criar as condições para que as escolas públicas possam garantir o acesso à educação para todos e evitar os níveis actuais de exclusão escolar. Mas claro que existem desafios particulares em relação à inclusão e retenção de meninas no sistema escolar. Em comparação com os rapazes, muitas meninas nunca sequer frequentaram uma escola ou, se o fizeram, é provável que a tenham abandonado prematuramente. Isto tem que ser combatido com programas de apoio muito bem pensados, porque a exclusão das meninas do sistema de ensino tem causas complexas, tanto económicas como sociais.

Como despertar o interesse das meninas pelo mundo da ciência, para que comecem a construir um pensamento científico a partir do ensino primário?

Reitero aqui a importância da garantia de acesso, oportunidades e condições de educação de qualidade para todos.

Ao que tudo indica, em Angola não deve haver estudos sobre a presença de mulheres nas carreiras científicas, um vazio que, no meu entender, atrasa o desenvolvimento de políticas científicas de incentivo e de valorização feminina na ciência. O que tem a dizer sobre isso?

Concordo que isto representa um vazio e recomendo o desenvolvimento de um estudo desse género.

Qual é a realidade sul-africana no que diz respeito à valorização feminina no campo da ciência e da pesquisa?

Quando vim para a África do Sul, há mais dez anos, para começar os meus estudos de doutoramento, como parte do African Doctoral Academy, um programa baseado na Universidade de Stellenbosch que oferece bolsas de doutoramento em ciências sociais, éramos três mulheres entre mais de 20 homens e quase todos os professores orientadores eram homens. Dessas três, do meu ano, apenas eu e uma outra colega conseguimos concluir o nosso doutoramento com êxito. Nos quatro anos que seguiram, tive várias bolsas de pós-doutoramento e aí já tive a sorte de trabalhar com mais mulheres, permitindo a criação de pequenas redes de apoio e ajuda, o que foi muito importante para mim, tendo sido também uma altura em que tive os meus filhos. Nestes anos também já vi mais mulheres a passarem a ocupar postos de liderança na universidade, desde chefes de departamento a reitoras. Ainda assim, existe espaço para promover e valorizar, ainda mais, a participação de mulheres no campo da ciência, sobretudo, em áreas de pesquisa historicamente dominadas por homens, mas já é muito importante ter estes exemplos de mulheres bem sucedidas em cargos de chefia, porque isto também lhes permite abrir o caminho para as gerações seguintes.

Historicamente, a ciência sempre foi vista como actividade realizada por homens. A presença de mulheres tornou-se expressiva a partir do século XIX e são conhecidas as contribuições, realizações e as barreiras que as pioneiras encontraram. O futuro da ciência é feminino?

Apesar dos entraves históricos à participação de mulheres na academia e pesquisa, existem inúmeros exemplos de invenções e estudos inovadores que elas conseguiram desenvolver. O que falta é falar e ensinar estes exemplos mais amplamente, ou seja, o que falta é talvez o reconhecimento de que a ciência sempre foi também feminina e que precisamos de encontrar mais formas de apoiar essas contribuições para que as mulheres possam participar plenamente no mundo da ciência e realizar todo o seu potencial.

Numa mensagem, publicada, em 2020, por ocasião da celebração do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, a directora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, disse ser “preciso quebrar os estereótipos de género que ligam a ciência à masculinidade e expor as gerações jovens a modelos positivos de engenheiros, astronautas e pesquisadores”. Que desafios devem ser colocados numa estratégia de igualdade de género no universo científico e tecnológico?

Concordo com esta afirmação, o que confirma o que disse, anteriormente, sobre a importância de falarmos e ensinarmos mais sobre os exemplos das contribuições das cientistas pioneiras. Mas, mais uma vez, isto também deve passar por investimentos em sistemas e condições de ensino de qualidade a partir da base para garantir que exista igualdade de género no que toca às oportunidades de acesso à educação.

Como avalia a contribuição dos meios de comunicação social tradicionais na difusão do conhecimento científico?

A comunicação social tem um papel importante na difusão de conhecimento científico, sem dúvida. Mas nós, como cientistas, também temos que reconhecer que, se quisermos que os resultados das nossas pesquisas tenham alguma aplicação prática, temos que fazer o nosso papel que é disseminar o nosso trabalho de forma mais acessível. Ou seja, uma coisa é escrever um artigo científico cheio de jargão, que é capaz de só ser lido e debatido dentro de uma pequena comunidade académica, outra coisa é, por exemplo, escrever um resumo da nossa pesquisa com recomendações práticas que possa ser partilhado com decisores políticos para enformar a formulação de políticas públicas.

O ensino de ciência em escolas sem laboratório está condenado ao fracasso?

A falta de condições técnicas como laboratórios representa, certamente, um entrave para o ensino prático e tem que se investir nisso, porque há simplesmente coisas que não podem ser estudadas só com base em livros. Mas a chave para a ciência é, primeiramente, o pensamento criativo, analítico e crítico e existem muitas formas e ferramentas inovadoras que podem ser usadas e desenvolvidas para este fim.

Os países em vias de desenvolvimento devem seguir cegamente os passos dados pelos países desenvolvidos?

A vantagem de países em vias de desenvolvimento é que não precisam de seguir o caminho predefinido pelo mundo Ocidental, podendo, simplesmente, saltar alguns passos, permitindo o que se tem chamado leapfrogging. Por exemplo, já vemos em vários países africanos, como o Quénia ou a Nigéria, invenções na tecnologia digital, que têm permitido imenso progresso na área da comunicação e no sector bancário, abrindo vias para pagamentos através do telemóvel para serviços que até incluem o acesso à energia renovável. Mas não esqueçamos que estas invenções não substituem investimentos importantes em serviços e infra-estruturas públicos de base, como a água e saneamento.

Como podem, a ciência e a pesquisa, contribuir para o acesso equitativo à água e ao saneamento?

Eu, pessoalmente, sou muito apologista das metodologias transdisciplinares. A transdisciplinaridade refere-se a uma forma de pesquisa reflexiva, integrada e metodológicamente dirigida à resolução ou transição de problemas sociais através da integração de vários corpos de conhecimento. Ou seja, este tipo de pesquisa parte do princípio de que existem diversos sistemas de conhecimento, dentro da ciência, assim como dentro da sociedade. E que, para fazer ciência que tem alguma utilidade pública, esta tem que ser co-produzida numa colaboração entre cientistas e os mais diversos membros da sociedade. No contexto de pesquisas de sustentabilidade, as pesquisas transdisciplinares geralmente se referem a processos iterativos e colaborativos, envolvendo diversos tipos de perícia, conhecimento e actores, a fim de produzir conhecimento contextual e caminhos para um futuro sustentável.

Dê um exemplo sobre como se pode trabalhar com metodologias transdisciplinares.

Voltando à questão do acesso à água e saneamento, podem existir muitos estudos de ciêntistas sobre a instalação ou o funcionamento de sistemas de água e saneamento.

Mas será que estes estudos foram feitos envolvendo as pessoas que vão financiar, gerir ou consumir os serviços ou bens destes sistemas?

Uma metodologia transdisciplinar começa por tentar perceber o problema: falta água ou, então, os sistemas existentes de água são de alguma forma ou outra deficientes. São, por exemplo, caros ou não acessíveis com regularidade pelos utentes. Este processo de definição do problema pode envolver cientistas de várias disciplinas, hidrólogos, engenheiros, economistas mas, também, por exemplo, antropólogos, instituições do Estado e membros da comunidade, para perceber como os sistemas actuais funcionam. Por exemplo, qual é a principal fonte de água? Como é a qualidade e o acesso actual à agua? E quais são os meios disponíveis para financiar a instalação e manutenção de novos ou sistemas alternativos? Acredito que este tipo de abordagem é chave para melhorar o acesso mais equitativo a serviços e bens públicos, porque nos ajuda a criar sistemas mais apropriados e sustentáveis no contexto das realidades e necessidades particulares de cada determinado local.

As suas pesquisas têm como foco a África Austral e lusófona. Particularmente a Angola, tem partilhado o resultado das suas pesquisas sobre Política Urbana e Governança com decisores políticos angolanos?

Tenho partilhado, sim. No meu último projecto, usei uma abordagem transdisciplinar para levantar dados relacionados com as metas e indicadores do Objectivo de Desenvolvimento 11 das Nações Unidas, que visa tornar as cidades e comunidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis. Trabalhei numa parceria com a ONG Development Workshop Angola e, estreitamente, com representantes de vários ministérios e instituições do Estado, tais como administrações municipais, membros das comunidades e instituições académicas, e os resultados finais do estudo foram lançados no Instituto Nacional de Estatística.

O Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência não deveria ser aproveitado pelos países africanos como dia de reflexão à volta de um tema sempre actual – a fuga de cérebros africanos – a fim de serem encontradas as melhores soluções para a retenção de quadros altamente qualificados?

Pode ser aproveitado, sim. Mas a fuga de cérebros é um fenómeno global que não afecta apenas os países africanos. Geralmente, as pessoas, quando podem, vão aonde conseguem encontrar melhores condições de vida e de trabalho. Podemos citar, como exemplo, os mexicanos nos Estados Unidos da América ou os migrantes de vários países do sudeste da Europa. Mesmo dentro do continente africano, existe muita migração, o que nem sempre é mau, porque contribui para a existência de fluxos enormes de remessas. O que eu não percebo, às vezes, é a discrepância nos esforços feitos para ajudar as pessoas a formarem-se fora, com ajuda e bolsas do Estado, e, depois, não se conseguir investir nas condições que venham a facilitar o enquadramento destas pessoas depois do seu regresso. No sector da ciência, isto passa pela criação de condições, infra-estruturas e programas de apoio acima mencionados.

Por que razão é identificada como sul-africana, na lista dos “100 académicos mais influentes no mundo”, nomeados em 2021 pela plataforma “Apolitical”, quando, até onde sei, é angolana?

Acho que a lista foi feita com base na afiliação institucional. Por ser afiliada a uma universidade na África do Sul, devo ter sido identificada neste sentido.

Como recebeu a notícia e que importância a inclusão do seu nome na lista dos “100 académicos mais influentes no mundo” tem para as suas pesquisas?

Na verdade, recebi a notícia, primeiro, através de uma colega, que tinha visto o meu nome na lista, e, depois, fui contactada pela organização. Ainda estou num processo de desenvolver uma contribuição sobre o meu trabalho para o website deles. Os académicos são nomeados por funcionários públicos que, por alguma razão, são inspirados ou influenciados por trabalhos em áreas que representam desafios para os governos em todas as partes do mundo e que representam uma oportunidade para uma colaboração intergovernamental. Não sei quem me nomeou, mas é muito bom e gratificante saber que o meu trabalho é reconhecido, por ter algum impacto e valor.

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